terça-feira, 29 de outubro de 2013

Me vê mais uma dose, por favor?

No meu mundo as pessoas poderiam, por exemplo, pagar por uma dose de coragem.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Tem coragem?
- Tem sim senhora.
- Quero duas doses caprichadas!
- Cuidado, senhora. Essa aqui é da boa!
- Então me dê três doses.
A mulher sai da farmácia... ou será do bar? Não sei.
Bom, a mulher sai do estabelecimento, chega em casa, arruma a mala, pega o cartão de crédito do marido e sai sem rumo, sem limite e principalmente, sem medo.
Ah! Esqueci do bilhete que ela deixa: "Só me faltava coragem".. hahaha
No aeroporto, encontra com uma outra mulher de estatura média, cabelos longos, unhas vermelhas e vestido florido.
Ela observa a aflição da moça que rói as unhas e estraga toda a obra de arte do esmalte de brilho intenso.
Sem exitar, pergunta: Vai para Brasília?
- Não, acabo de chegar por aqui.
- Vejo que está nervosa. Posso ajudar?
- Na verdade não. Talvez nem eu possa.
A fujona conclui que para a moça do vestido florido falta somente coragem, que lhe tiraria a aflição... ela poderia ajudar. Mesmo assim, teve a coragem de se despedir sem dizer nada, sem perguntar mais; apenas com um simplório aceno de mão.
Olhando para a enorme e iluminada lista de vôos, decide o destino da seguinte maneira:
- Vou na letra D, que é a letra do último cara com quem saiu antes de se casar. Por que isso? Porque teve coragem de lembrar-se dele com detalhes, sem culpa e com esperança de encontrar o moço em Diamantina, interior de Minas Gerais.
Ótima escolha! E aqui fala a que vos escreve, Uuka Idi... rs
Minas é encantador porque parece história de livro infantil. Tem casinha de madeira pintada e planejada sem designer. Tem doce de vó, queijo de verdade; tem aconchego e gente sábia demais para nosso entendimento urbano. Tem terra, cheiro de terra. Árvores e flores e sol e chuva.
E tem também um cheiro de volta para casa que nunca mais sai da memória das narinas - disse a viajante quando pisou em Confins.
É que em Diamantina não tem aeroporto.
Não tem problema, porque lá continua sendo Minas Gerais... rs
Desembarca, pega a mala, põe os pés na calçada. Anda um, dois, três passos e larga a mala ali mesmo, cheia do que ela já não é mais.
A essa altura tudo já é outra coisa e isso é só o que importa.
Então entrar num táxi sem taxista, com a chave no contato e sair dirigindo não faz diferença, faz?
Claro que não! Essa é uma estória de coragem, beirando à falta de limites.
Ela saiu pelo mundo... o de Minas Gerais, mas pra ela "O Mundo" e vive por lá, sem medo, sem marido e sem mala. Hora entra na rua errada, hora passa pelas calçadas e canta as músicas que vêm à cabeça, sem tirar o pé do acelerador, sem receio de tirar! Porque se não for assim, não vai para frente, não sai do lugar e vira estátua.
Há um dito popular que diz: "Vida que vive parada endurece".



Mentira, eu inventei isso...rs

Enfim, o que eu quero dizer é que uma vez que se toma a dose de coragem, se convém avançar a vida toda, para sempre, sem exitar...ou você vira pote de exame de urina. Mentira outra vez.
A moça que foi para Minas não existe, mas Minas existe. E existe dentro de um mundo inteiro de coragem e inteiro!.. rs
To melancólica? ...é tpm.
Fim.




Aquela casca da sua ferida

Quando tinha sete anos, caí na calçada de casa, ralei meu joelho direito e passei o resto do dia de cama, com a perna pra cima enfaixada. Não porque isso foi grave.
O machucado ficou com uma casca enorme, que não tive coragem de tirar. Ficou verde, caiu no banho.
Isso quer dizer que a cicatriz está aqui até hoje. Cada vez que a vejo, lembro religiosamente do quanto eu tenho medo de machucados, logo, não tenho perfil aventureiro.
Passando pelas minhas canelas você encontra duas marcas e só.
Ah! Na sobrancelha direita tenho um corte, que não precisou de pontos, mas exigiu muito da minha  resistência...rs
Não é segredo pra ninguém que tenho a memória enfraquecida então, contar cicatrizes ou a falta delas funciona como túnel do tempo, entende?
Aí é engraçado como um pedaço de pele ralada e nojenta, vira um griô. Sabe o que é isso??
São guardiões da memória e da história oral de um povo. Imagina a quantidade de cicatrizes desses caras!
Nesse contexto, quanto mais coruba você tem, menos tempo sobra agora para lamentar coisas que não viveu.
Mais difícil que tentar entender meu raciocínio, é limpar machucado antes de virar cicatriz.
Na hora que ta sangrando e doendo, não tem como imaginar o tipo de casca que irá se formar, simplesmente porque a única coisa que a gente quer, é que pare de doer e sangrar.
Uma vez, meu irmão perdeu o tampão do dedão do pé, jogando bola na rua. Entrou em casa chorando e eu me ofereci para fazer curativo.
Nada do que eu dissesse pra ele naquela hora faria passar a dor, mas eu disse que lavando com água e sabão, aquilo cicatrizaria no mesmo dia. Mentira.
Não sei se ele acreditou, mas consegui limpar aquela pele horrorosa, que podia ser do meu pé, mas não era, porque a história ali não era minha.
Passam dois dias ou dez e aí tudo continua a ser como antes. O sangue coagula, vira casca e cai. Ninguém para de jogar futebol na rua porque arranca o tampão do dedão.
Eu também não parei de andar de patins porque prendi as travas nas duas canelas...rs
Juro que tentei evitá-las como pude, só não tive sucesso.
O bom é que nunca ouvi dizer sobre alguém que passe uma vida inteira VIVO e sem cicatrizes, até porque elas não precisam necessariamente aparecer. Aliás, essas compensam  por não gerarem gastos com curativos e pó compacto depois. Em compensação, o remédio que cura não vende na farmácia...rs
Tudo que hoje é cicatriz já foi muito pior.
Querer ter história sem ter coruba é tão vazio como ter a coruba e não saber da história dela.
Quando vejo as cicatrizes das pessoas, fico tentando imaginar o que é que existe por trás delas.
Na maioria das vezes as minhas ficam pequenas. Tem tantas marcas incríveis, horríveis e inimagináveis, que acabam não condizendo com o perfil dos seus donos. Legal né?
O tamanho da cicatriz não tem muito a ver com felicidade ou a tristeza. No fim é só cicatriz. O machucado já foi.
Ter coruba faz a gente aprender a conviver com ela e num certo ponto, eliminá-la do corpo, com tratamento estético e da alma, com um pouco de sabedoria.
E aí enxergar na cicatriz a oportunidade é só uma questão de tempo, porque se machucado que não cicatriza apodrece a pele e o coração, não faz sentido não procurar um bom cicatrizante.

*Coruba é uma expressão usada costumeiramente pra designar uma corceira na pele. Aqui no blog é ferida, casquinha, nheca mesmo.. rs

Trilha: Deftones/ Feiticeira